CULTURA | ARTES PLÁSTICAS
1 abr 2012 | Rogério Borges | Autodidata, o artista plástico local Rogério Geo, 23 anos, começou a fazer colagens aos 16. Vem de então a perspectiva de mundo que continua a exibir em centenas de obras e que define a sua produção. Todos os seus conceitos estão claramente impressos, mas raramente são previsíveis. Observar uma colagem de Geo requer sintonia dos sentidos e atenção para os desníveis de leitura. Não é entretenimento.
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> Rogério Geo na mostra do CTLF: perspectiva de mundo | ||
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> Drugstore (esq) e colagem sobre prancha de skate: suporte sem discurso de referência | ||
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> Allanvive (esq), leitura ideológica de uma lenda política e Dolorosa, experiência pessoal | ||
> © COPYRIGHT ROGÉRIO GEO | REPRODUÇÃO | ||
> A dura vida de Tenório (esq) e Singer about isolation: quando a rua ficou perigosa | ||
É da adolescência, por exemplo, a colagem “Allenvive”, alusiva ao presidente chileno Salvador Allende, encontrado morto no Palácio de La Moneda, em Santiago, no curso do golpe militar de 1973. Marxista, Allende acreditava na democracia representativa e na via eleitoral. Mas Geo prefere destacar a lenda socialista para expressar um conteúdo mais ideológico que político. Para ele, o socialismo só é possível quando imposto – e pela via da força. Mas longe de expressar efetivo apoio ao método, ele apenas o registra. É assim que o mais cult dos ícones do marxismo latino-americano incorpora símbolos de morte enquanto pisoteia o capitalismo. A honestidade da crítica vem sublinhada pelo lápis que uma das garras exibe: a educação para todos, suposto apanágio dos regimes socialistas. É esse nível de complexidade que atrai cada vez mais olhares para a obra de Geo – já tecnicamente muito atraente pela sofisticação. Largamente maltratada na recente exposição do Cine Teatro de Lauro de Freitas, a produção de Rogério Geo transita numa esfera que exige espaço adequado, montagem profissional, iluminação planejada, curadoria. O mero dispor das obras numa parede, assim sem mais, rouba significados preciosos ao espectador. A origem cultural da obra de Geo, por exemplo, está num punk-rock de sentimento adolescente que demandaria expressão adequada naquele ambiente. Até porque, apesar da raiz punk, o trabalho de Geo abrange um espectro conceitual mais largo, distante da cultura de ódio mais comumente associada ao gênero. Numa entrevista recente ao “Zinismo”, um blog especializado, o artista brinca com a aparente inconsistência: “raiva e frustração fazem parte da arte, mas público fiel ao ódio é coisa para o Sex Pistols”, disse. As colagens trazem um tempero suave, mesmo nos temas mais densos. A filigrana da obra de Geo é diversificada. Quase fala por si a derivação “skater” da cultura punk, despretensiosamente representada em pranchas utilizadas como base para trabalhos recentes. Mas Geo não vai ao universo das pistas. Apenas se apropria do suporte, como quem lança mão do que lhe é mais natural e familiar, sem a necessidade de apresentar um discurso. Esse aspecto das coisas também merece representação. Sobre papel ou sobre pranchas, as peças são criadas a partir de recortes de revistas sobrepostos e sucessivamente tratados, camada após camada. Em três técnicas diferentes, além de recortes as colagens de Geo podem incorporar tinta para tecidos, grama, café. “Quero criar alguma coisa usando sangue”, disse o artista no ano passado ao blog canadense “Not Paper”, dedicado a divulgar colagistas de todo o mundo. Sangue, de acordo com Geo, é o que poderia estar na composição de uma série de dez colagens, todas com origem em “um lance muito pessoal”. São as obras que refletem experiências mais íntimas do artista. Entre elas “Dolorosa”, que retrata uma ex-namorada. Como em todas as colagens de Geo, o grau de detalhe reflete a profundidade da abordagem. Quase nada está lá por acaso ou para efeitos decorativos. Mas poucos elementos têm um sentido óbvio. A inscrição “cirurgia plástica”, por exemplo, tem um sentido bem diverso do que poderá supor o senso comum em relação a uma garota – que não queria aumentar os seios, aliás especialmente belos, mas diminuí-los ao ponto de se aproximar da figura masculina. Pessoais também são as experiências de Drugstore e Singer about isolation, ambas, de uma forma ou de outra, relacionadas ao tema das drogas. Adepto da tendência “straight edge” da cultura punk norte-americana – que prega a abstinência desse tipo de substância – Geo acredita que foi isso que o manteve distante das drogas num tempo em que amigos de escola morriam por se envolver com elas. Singer é produto de um período em que Geo, aos 15 anos, vivia praticamente recluso, com “muita coisa chata acontecendo ao meu redor”. Foi quando “a rua ficou perigosa, me senti muito inseguro para tudo”. Antes como agora, o problema eram “drogas, drogas, drogas”. Drugstore reflete experiências de gente próxima a Geo com o consumo de medicamentos “na busca por libertação das angústias do mundo”. Eles “se enfiaram em remédios” à procura da “cura errada”. A colagem reflete preocupações com o controle do peso, por exemplo, mas a droga em questão é um antiinflamatório que provoca alucinações quando consumido em altas doses ou acompanhado por álcool. Convulsões, sangramento intestinal, falência dos rins, gastrite e úlcera são algumas das consequências do abuso desse medicamento. Ninguém precisa esperar de Rogério Geo o tradicional, piegas – e comprovadamente falido – discurso antidrogas. O trabalho dele talvez represente a mais eficaz abordagem que se pode fazer a um tema: do grupo para o grupo, segundo os valores do próprio grupo. “Meus sentimentos, pelos familiares das vítimas da moda”, frase estampada em uma das suas colagens, reflete melhor a opinião do artista. Nesse sentido, o lado negativo do uso de drogas está na despersonalização da garotada – o tipo de crítica que Geo estende aos adeptos do rock “que se vestem de preto na adolescência, mas uns anos depois estão ouvindo Luan Santana”. São roqueiros “porque é moda”. O discurso alternativo, de contracultura de grupo, aparece com mais clareza nas ideias de Geo sobre o crack, para ele “parte de uma grande paranóia que mantém as pessoas cada vez mais em casa”, para assim “render milhões para a TV, rádio, Internet e muitos outros tipos de mídia”. Essa leitura das coisas tem mais audiência do que pode supor a vã filosofia de classe média. Uma audiência que se encontra ameaçada por aquilo que autoridades de saúde de todos os quadrantes já definiram como uma epidemia. Chegar até eles tem sido o desafio primordial. É arguindo a teoria da conspiração da mídia que Rogério Geo acaba por alcançar esse resultado. Mas nem todas as colagens de Geo vêm ao mundo para cumprir missões espinhosas ou consolidar a cultura de grupo. Algumas surgem de sentimentos tão leves como homenagear um trabalhador da Cesta do Povo de Lauro de Freitas. A dura vida de Tenório é uma homenagem ao personagem homônimo. “Muito sábio, me ensinou muita coisa, muito cheio de cultura, um dos caras mais exóticos que conheci”, conta Geo. As primeiras colagens vieram para compor capas das produções das bandas de punk-rock e hardcore de que Geo participou, “Por uma causa” e “Kid´s on coffee”. As peças com expressão própria surgiram com o fim das bandas, pelo desejo de continuar a se expressar naquela mesma “pegada”. O fanzine Feel Paper, o mais recente de Rogério Geo, vem nessa trilha. Lançado em março em São Paulo, traz vinte trabalhos, incluindo peças inéditas. Política, espiritualismo e crítica ao consumo de massa estão na base de todas as colagens, mas Geo prefere destacar o “sentimento”, já a partir do título, que poderia ser entendido como “papel de sentir”. Todos os trabalhos “estão carregados de um rol imenso de conceitos e sentimentos”, explica. “Atrofiando a Teoria (em Papel e Espírito)”, nome da mostra que passou pelo Cine Teatro, já remetia aos sentidos – ou sentimentos – mas parece que o papel exerce maior impacto sobre Geo. “Nosso suor e nossos trabalhos não serão banalizados pelas massas de consumo, pois não temos código de barra em nossas criações”, lê-se na abertura do zine. De fato, apesar de convidado, Geo nunca quis participar de exposições. Ele põe mais autoconfiança na produção dos fanzines “porque é anti-comercial, de certa forma”. E explica: “não que eu seja anti ‘vender’ e tal, mas é algo feito de artista para artista e enviado da mão suada de cada um, é meramente amor e se tem amor, já valeu a pena”. Valeu mesmo. |