CIDADE | VIOLÊNCIA
4 jan 2012 | Enquanto o Instituto Sangari divulgava em Brasília as mais recentes taxas de homicídio em todo o país, deixando Lauro de Freitas em posição muito negativa, uma equipe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) apresentava aqui as razões para essa violência. Foi em dezembro, por meio de um diagnóstico aplicado à região de Itinga.
Os dados do PNUD resultam de estudos desenvolvidos desde fevereiro de 2011 no âmbito do programa conjunto da ONU “Segurança com Cidadania”, que investe US$ 6 milhões em ações de desenvolvimento humano no combate à violência, com foco em crianças, adolescentes e jovens de até 24 anos. Itinga foi selecionada, ao lado de Vitória (ES) e Contagem (MG), pelos seus altos índices de violência e pelo engajamento da comunidade na busca de soluções.
> FOTO DE JOÃO RAIMUNDO EM 21.05.2008 | ||
> Vista aérea da região de Itinga onde será implantado o Instituto Federal da Bahia | ||
> REPRODUÇÃO DE APRESENTAÇÃO DO PNUD | ||
> Gráfico mostra a concepção de diagnóstico aplicado pelo PNUD | ||
Dados do Mapa da Violência 2012, divulgado em dezembro último pelo Instituto Sangari, apontam que Lauro de Freitas como um todo apresenta agora a quarta maior taxa de homicídios na Bahia e a 14ª do país, com 99,1 assassinatos por cada 100 mil habitantes. Dez anos atrás Lauro de Freitas ocupava a posição número 198 (índice 2,6). A classificação reflete a ocorrência de 162 homicídios na cidade apenas no ano de 2010. No ano 2000 foram três, 145 em 2008 e 170 no ano seguinte. O aumento na taxa de homicídios em Lauro de Freitas está na contramão da média nacional, que chegou a registrar variação negativa média de 1,4% ao ano entre 2003 e 2010, e supera por larga margem a variação na RMS, no interior da Bahia e em todo o estado. Entre 2000 e 2010 a taxa de homicídios cresceu 3.651% em Lauro de Freitas, atrás somente de Simões Filho, que registrou um aumento de 4.760%. No mesmo período, a taxa de Camaçari aumentou 256%, a de Salvador 330% e a da Bahia 301%. Em todo o país, no quesito aumento da taxa de homicídios, Simões Filho e Lauro de Freitas só perdem para o município de Ananindeua, no Pará, que registrou 744 assassinatos em 2010. A bem sucedida candidatura de Lauro de Freitas ao programa conjunto da ONU representou uma rara – e inédita – decisão política de encarar esses fatos em busca de soluções efetivas. O anfitrião institucional da equipe da ONU na cidade é o Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGI-M), chefiado por José Carlos Arruti, que operacionaliza localmente o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci). O diagnóstico apresentado à comunidade no início de dezembro representa a primeira etapa do programa, que segue agora para a etapa da discussão de soluções com a mesma comunidade. A cobertura de imprensa em todos os passos do programa faz parte do método de trabalho do PNUD. Ao contrário dos projetos sociais pré-formatados ou ligados à transferência de renda, o que o “Segurança com Cidadania” da ONU oferece é tecnologia de desenvolvimento humano para prevenir a violência entre crianças, adolescentes e jovens em condições vulneráveis. Serão principalmente ações com foco na mudança de comportamento. Não por acaso, para o PNUD, “segurança” é algo relacionado “às práticas cidadãs de respeito pela vida e pela dignidade” e inclui a segurança econômica, alimentar, ambiental, pessoal, comunitária e política. A definição de “violência” está ligada à negação da cidadania e “ocorre quando há discriminação, preconceito, repressão social e inversão de valores humanos”. Os técnicos do PNUD explicam que a violência é um fenômeno que tem muitas causas, e não uma causa isolada. Para efeitos conceituais, o estudo identifica seis eixos, que vão da violência incidental à violência instrumental: déficit de capital social, presença de fatores de risco, violência contra a mulher, contextos sócio-urbanos inseguros, insuficiência policial e da Justiça e o crime organizado. Nessa mesma ordem, o PNUD preconiza abordagens que vão da prevenção ao controle da violência. Os eixos têm importância equivalente, sem nenhuma forma de hierarquização entre eles. Há ainda uma avaliação da “capacidade institucional”, que “não é uma capacidade de governo e sim de comunidade e instituições”. Na esfera institucional, os pesquisadores apontam a falta de regulamentação e estruturação da Guarda Municipal, que também não tem ainda um papel constitucional definido. Foi também diagnosticada, entre outras falhas, uma pulverização de ações e políticas. O PNUD insiste em que as falhas institucionais não representam uma falta de “capacidade governamental”, mas um problema que perpassa o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, nas três esferas: municipal, estadual e federal. Déficit de capital social Técnicos até então estranhos à realidade local encontraram em Itinga a conhecida “falta de identidade da população com Lauro de Freitas”, além da reconhecida “marginalização da população” daquela região. Em um grupo de jovens da Escola de Cadetes Mirins, ouvidos pelos pesquisadores para o diagnóstico, o PNUD destacou depoimentos como “às vezes tenho vergonha de falar que moro na Itinga, todo mundo acha que aqui só tem marginal”. O distanciamento em relação ao Centro da cidade – que para os moradores de Itinga é a própria “Lauro de Freitas” – ficou claro em testemunhos como “a gente da Itinga tem de ir pra Lauro pra achar lazer”. No grupo de mulheres ouviu-se que “na Itinga tem muita coisa, mas para a maioria a gente tem de ir lá em Lauro”. A frase mais marcante apresentada no diagnóstico veio do grupo de jovens: “vem cá, lá no Rio de Janeiro tem praia em todo lugar, é? Sempre vejo na televisão jovens de minha idade na praia. Eu nunca fui na praia, dona”. O Largo do Caranguejo, centro social e comercial de Itinga, fica a 5,8 Km do ponto mais próximo da orla, em Ipitanga. Esse aspecto faz parte do capítulo do “déficit de capital social”, que avalia redes de relacionamento baseadas na confiança, cooperação e inovação desenvolvidas pelos indivíduos dentro e fora das organizações. Outros problemas foram identificados: o desconhecimento e descumprimento de normas de convivência, a falta de uma rede social articulada, a ausência de cultura de solução pacífica de conflitos e a onipresente apropriação indevida do espaço público: a desordem urbana. A ausência de controle social é mais um dos fatores apontados pelo estudo. Houve auto-crítica no grupo de jovens – “as pessoas cobram muito do poder público, mas não se mobilizam para realizar as atividades que querem” – e crítica dos jovens ao poder público: “já fui membro de grêmio estudantil, fazíamos ofícios para a prefeitura, mas nunca responderam”. | ||
> FOTO DE KATHERINE EVANS | ||
Fatores de risco Os fatores de risco, outro dos seis eixos que formam as causas da violência, começam pela glamorização e consumo excessivo de álcool na região. O mapa eletrônico do Gabinete de Gestão Integrada Municipal do Pronasci mostra uma alta concentração de bares em Itinga. Esses fatores, para o PNUD, são “situações que colocam as pessoas em condições de vulnerabilidade aumentando as chances de se tornarem vítimas ou agentes da violência”. Nesse sentido, a desigualdade sócio-econômica de Lauro de Freitas, bem acima da média nacional, é mais um deles. A renda das famílias mostra uma concentração de 54% na faixa de até dois salários mínimos, enquanto a faixa média-alta, de cinco a dez salários mínimos abrange apenas 8% da população. Nacionalmente, as mesmas faixas de renda quase se equivalem, em torno dos 20% cada uma. O uso e porte de armas, o consumo e venda de drogas ilícitas, o “elevado Indice de Homicídios na Adolescência” (IHA) e a ausência de espaços para aproveitamento do tempo livre são outros fatores de risco em Itinga. A apreensão de drogas em Itinga é mais que o dobro da média do município e 80% superior à de Salvador, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública da Bahia de 2010. Modo geral, os números do relatório Sangari foram confirmados pelo aumento de 77% no índice de homicídios de adolescentes em Lauro de Freitas entre 2005 e 2007. Na Região Metropolitana de Salvador (RMS), o índice só é menor que o de Simões Filho, líder nacional em taxa de homicídios. A falta de preparação para o mercado de trabalho, mais um fator de risco identificado pelo PNUD, foi traduzida pelo percentual de jovens que não estudam. Os dados são do Plano Municipal de Segurança, encomendado a uma consultoria especializada pela prefeitura no ano passado. Na faixa dos 15 aos 19 anos, quase 20% estão fora da escola. Entre os jovens de 20 a 24 anos, mais de 60% não estudam. A “falta de perspectiva para uma carreira”, sendo “difícil” encontrar vagas em cursos profissionalizantes e técnicos, foi a razão mais frequentemente apontada nos grupos de jovens pesquisados. A escolha de Itinga para a implantação do futuro Instituto Federal da Bahia – instituição sucessora do antigo Cefet – poderia ter sido justificada pelo diagnóstico. A ausência de espaços em Itinga para aproveitamento do tempo livre também foi identificada como fator de risco. Entre os adolescentes, o PNUD destaca um depoimento que dimensiona o problema: “Tá na escola, estuda, mas quando volta para casa não tem o que fazer. Por isso vamos para as ruas. Tem o Mais Educação, Segundo Tempo, mas [a gente] sente a necessidade de um curso de música. Lá tem aula de violão, mas é sempre teórico, nunca é prático. [a gente] sente falta de um espaço para passar o tempo de forma produtiva junto com os colegas e vizinhos”. Os técnicos do PNUD captaram ainda a antiga reivindicação por equipamento cultural em Itinga: “Aqui tem muita rixa, então quando tem eventos culturais no Centro eles acabam não indo por conta das rixas. Por isso seria importante fazer um teatro em Itinga” – foi dito nos grupos de adolescentes. Violência contra idosos, mulheres e crianças Em outro dos eixos, o PNUD detectou a “dificuldade de operacionalização do Centro de Referência Lélia Gonzalez”, que atende mulheres em situação de violência, devido a problemas de deslocamento. Instalado em Vilas do Atlântico, o Centro de Referência fica a quase 9 Km de distância do Largo do Caranguejo. O diagnóstico aponta que “o centro já teve uma van, mas que deixou de ser usada”. O PNUD verificou também que não há dados consolidados capazes de dimensionar esse tipo de violência no município, apontou a falta de pelo menos uma delegacia especializada, deficiências de atendimento à criança e adolescente vítima de violência e dificuldades operacionais do Conselho Tutelar. Espaço urbano Os espaços públicos e de circulação em mau estado, que representam o quarto eixo tratado pelos pesquisadores, foram detalhados em aspectos já muito conhecidos: pontos de alagamento, terrenos baldios, má conservação de ruas e praças, pontos mal iluminados, praças e parques abandonados, apropriação social do espaço público e baixa mobilidade urbana – a falta de transporte público adequado. Insuficiência policial e da Justiça Na faixa do espectro já mais próxima da violência instrumental, a insuficiência policial e da Justiça aparece amenizada pela existência do Balcão de Justiça e Cidadania, que além do escritório de Itinga existe também em Areia Branca, outra região conflagrada de Lauro de Freitas. O PNUD anota que o Balcão de Justiça e Cidadania “é um importante mecanismo de mediação de conflitos, mas que precisa ampliar sua atuação”. O diagnóstico aponta o “bom trabalho com questões de Direito de Família e homologação de acordos extrajudiciais”, mas destaca a falta de atuação em outras áreas. Em relação ao contingente policial da região, classificado como “relativamente mais baixo” que a média, o diagnóstico aponta que isso não indica necessariamente uma “atuação ruim” porque “se houver preparo, articulação e capacitação a atuação pode ser muito eficiente”. De acordo com o Plano Municipal de Segurança do GGIM, o número de policiais militares a serviço da 81ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM), que atende Itinga, representa cerca de 20% do contingente de todo o município: 28,8 por cada 100 mil habitantes. A média do município (149,28), por sua vez, é inferior à da Bahia (214) – que é semelhante à do Nordeste (201,1) e à do Brasil (221,4) como um todo. O baixo número de varas e magistrados para a população local e a falta de varas especializadas de infância e juventude, atendimento à mulher e de execuções penais são outros fatores de risco. Falta também, sempre de acordo com o diagnóstico, articulação com a política estadual de penas e medidas alternativas e espaços de mediação de conflitos. Crime organizado Na ponta extrema do espectro aparecem os grupos criminosos organizados e o recrutamento de jovens para a prática de atividades ilícitas. O PNUD associou a apreensão de armas e drogas e outras estatísticas criminais à presença do crime organizado. Os pesquisadores destacaram depoimentos de jovens que sabem que “onde o governo não chega, outra forma de governo vai acabar chegando”. De acordo com eles, “aqui na Itinga essa forma de governo tá muito forte”. Um jovem testemunhou que “existe o crime organizado na Itinga e é oxigenado por aspectos individuais. O cara comanda a boca do alto e disputa o mercado”. No grupo de famílias sobressaiu o “muito medo dos traficantes e do poder deles aqui no bairro”. Uma forma de presença do Estado – as Bases Comunitárias de Segurança (BCS) que vêm sendo implantadas em Salvador – está prevista para Itinga, mas a realidade do recrutamento de adolescentes para o crime indica a necessidade de uma ação mais dirigida à mudança de valores e comportamentos do que propriamente policial. Em um grupo de jovens foi dito que “o menino de cinco anos cresce com o vizinho que é traficante, vê que ele tá barão, acaba sendo o seu modelo”. No grupo da Escola de Cadetes Mirins o testemunho repetiu-se: “tem menino que aparece com anel de cédula de cem reais. Faz isso pra mostrar pros outros o quanto ele ganha vendendo drogas. E é tudo menino novinho, rapaz. O cara vai preferir trabalhar pra ganhar quase nada ou traficar?”. O que a ONU propõe é, basicamente, levar o garoto a responder a essa questão de uma maneira diferente. |